UNIVERSIDADE NOVA

Universidade e crise capitalista: a possibilidade de uma janela histórica

Poliana Rebouças

Há cinqüenta anos a universidade pública brasileira tenta se equilibrar sobre o desenvolvimento de uma das contradições mais importantes de sua história. A reivindicação da autonomia na definição de seus valores e objetivos se choca com a submissão a critérios de eficácia e produtividade de origem empresarial ou de responsabilidade social. Da dificuldade de resolver profundamente esta tensão, eclode em suas relações internas e externas uma crise institucional, que monopoliza as atenções e os propósitos reformistas e que coloca em cheque a universidade e seus serviços enquanto um inequívoco bem público.

A origem desta crise se dá no fim da década de sessenta, quando o endividamento externo resultante do processo expansionista de industrialização, reduziu o compromisso político do Estado com universidade, diminuindo sua prioridade nas políticas públicas e conduzindo-a a uma imediata secagem financeira e descapitalização. A conseqüência destes fatores, produto da concepção política do regime militar, levou, além de a um controle político da autonomia universitária, visando eliminar a produção e a divulgação de conhecimento crítico, à abertura da universidade ao setor privado nacional e internacional. As intenções do projeto de Reforma Universitária de 1968 estavam justamente na busca pela reestruturação e reorganização da universidade em par com a tentativa de inserção do Brasil no capitalismo associado-dependent e.

Esta situação se intensificou durante toda a década de 70 e, depois da crise do milagre econômico brasileiro, cujo efeito se tornou muito grave a partir de 1981-1983, com a dívida externa, as elevadas taxas de inflação e com uma profunda crise do Estado, a universidade passava por uma estagnação sem precedentes e caminhava, junto ao país, pela frustrante “década perdida”. No período de transição da ditadura à democracia, a busca e a afirmação da autonomia se conjugavam com a privatização e a crise financeira da universidade, tornando o grito pela liberdade invocado para justificar a adaptação às exigências da economia e a procura por novas dependências financeiras, sem dúvida, muito mais caras à instituição do que a dependência ao Estado. Era o período em que o neoliberalismo começava a se impor enquanto modelo de desenvolvimento econômico internacional.

Na década de 90, outras duas crises mais antigas da universidade passaram a se concentrar sobre a crise institucional: a crise de legitimidade e a crise de hegemonia. A primeira gerada pela tensão entre a hierarquização dos saberes especializados por causa do acesso restrito e a reivindicação social e política à democratização e à igualdade de oportunidades, e a segunda gerada a partir da necessidade da sociedade em procurar e em exigir meios alternativos ao Estado para suprir a carência de novas possibilidades de formação, deixando de ser, a universidade, o único centro produtor de saberes.

Sobre a crise de legitimidade, seu agravamento foi resultado de uma perda geral de prioridade das políticas sociais mantidas pelo Estado induzida pelo modelo econômico neoliberal. Foi a partir da imposição deste modelo que surgiu a idéia de que os problemas da universidade pública eram irremediáveis e que para solucionar todas as crises era necessária sua abertura ao mercado.. O resultado deste pensamento foi o desenvolvimento violento de um mercado de ensino altamente desregulado e a transferência de recursos humanos da universidade pública para o setor privado.

Estava dada a mercadorização da universidade pública, que consistia em induzi-la a enfrentar a crise financeira gerando receitas próprias através de parcerias com o capital, privatizando parte dos serviços que presta, depois se transformando numa entidade que produz a si mesma como mercadoria. Isto ocorreu de duas formas: foi nesta década que se expandiu e se consolidou o mercado da educação a nível nacional e depois emergiu o mercado internacional, com lógica exclusivamente mercantil, defendido e levado a cabo como solução de todos os problemas da educação superior pelo Banco Mundial e pela Organização Mundial do Comércio. Em relatório produzido em 2002, o Banco Mundial diz que para o Brasil o projeto educacional deveria priorizar a ampliação do mercado universitário, combinando a redução de custos por estudante e eliminando a gratuidade do ensino público. Obedecendo a este plano, o governo FHC viabiliza uma linha de financiamento de cerca de R$ 750 milhões para instituições de ensino superior através do BNDES com recursos oriundos do Banco Mundial, onde a grande maioria dos recursos seria investida em instituições privadas.

Este projeto político-educacional que estava em curso, visava tirar a universidade da construção de um projeto de país e da produção de pensamento crítico e de longo prazo, tornando-a definitivamente vazia de preocupações humanistas e culturais. Não se teria mais acesso a universidade por meio da cidadania, mas através consumo. A educação não seria mais um direito e sim um produto. Estaria centrada agora no indivíduo e em pretensões individuais e não em interesses coletivos. As lutas pela democratização radical da universidade seriam abrandadas, a universidade formaria uma massa técnica, mantenedora do status quo. Não seria um possível obstáculo à expansão do capitalismo global. Estaria incapacitada para questionar a si própria. Para contrapor este modelo, seria necessária a construção de um novo projeto de nação, com pretensões tão amplas quanto o neoliberal, porém ideologicamente contrário, prezando pela cooperação e respeito à soberania entre os países e não por uma relação colonialista.

Nesta primeira década, o século XXI traz fatos políticos e econômicos que podem apontar para uma possível nova etapa histórica para a universidade no país. As políticas implementadas a partir de 2005 somadas à crise do capitalismo global centrado no neoliberalismo que eclode em 2008, podem indicar a abertura de uma janela histórica, de retomada das lutas em torno da solução da crise de legitimidade e da crise institucional da universidade pública. A democratização do acesso através das cotas e da ampliação de vagas, com investimento financeiro, social e político do Estado pode reconstruir, assegurar e concretizar a universidade enquanto um direito social e ser a oportunidade para um processo de universalização, absorvendo membro de classes populares historicamente excluídas e criando um sentimento de anti-privatização. Estes mecanismos aliados a uma política de permanência podem reduzir cada vez mais a estratificação social internamente e garantir o pleno direito à vivência do ensino, da pesquisa e da extensão com igualdade de meios. O investimento e valorização da carreira docente e técnico-administrati vo e a realização de concursos públicos para estes setores precisam acompanhar as atuais demandas por ampliação.

A reorientação dos currículos do ensino médio e fundamental públicos precisa estar diretamente articulada com o ensino público superior. Uma nova forma de acesso para além do vestibular é necessária, mas também é necessária a valorização pública deste setor, se não todas as tentativas de democratização do ensino superior serão inócuas.

O retorno à discussão sobre a autonomia da universidade se faz absolutamente necessário, não apenas a partir da autonomia nos contratos de gestão, mas uma autonomia profunda, que dê à universidade direito e poder de definir os rumos de suas pesquisas, da formação acadêmica e da docência.. A autodeterminação das políticas acadêmicas, dos projetos e metas das instituições universitárias e da condução administrativa, financeira e patrimonial só terão sentido se forem aliadas à transparência e participação democrática de todos os seus setores e de representantes da comunidade em todas as suas decisões. Os orçamentos também precisam ser debatidos, segundo o modelo do orçamento participativo.

A reforma que tem se efetuado nos últimos cinco anos sobre a universidade brasileira, com a política de ações afirmativas, de reestruturação e expansão das universidades, a necessária e estruturante política de permanência que precisa ser desenvolvida, o novo vestibular e o incentivo ao alcance da tão sonhada autonomia, precisa estar inserida na construção de um projeto democrático e popular para o país e concatenada ao desenvolvimento de uma nova política que tenha como objetivo a soberania dos povos. A crise no neoliberalismo abre chance para uma reconstrução do Estado numa perspectiva democrática e a conjuntura política atual da América Latina torna possível a construção de um mundo multipolar, a partir dos avanços da integração regional que ainda não incidiu sobre a reforma necessária para as universidades latino-americanas.

Outras reflexões em SANTOS, Boaventura S (2005). A Universidade no século XXI – Para uma reforma democrática e emancipatória da universidade. Coleção questões da nossa época. Volume 120. 2ª Edição. São Paulo: Cortez e em CHAUÍ, Marilena (2003). “A universidade pública sob nova perspectiva”. Conferência de abertura da 26ª reunião anual da ANPED. Poços de Caldas, 5 de Outubro de 2003.

Poliana Rebouças é estudante de Saúde Coletiva e diretora do DCE da UFBA

Gestão Quilombo Kizomba: Ousar Ser Diferente
2007-2008

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